História Relatada pelo Agente Comunitária de Saúde Renata Nascimento
Hoje, a nossa Clínica da Família continua com a série de relatos sobre as histórias dos maiores beneficiados da nossa unidade: Os Cadastrados. E para começar essa série de relatos, nada melhor do que uma história de conscientização e superação;
Tem que ser branco
Tem que ser alto
Tem que ser magro
Tem que ter saldo no banco
Tem que ser alto
Tem que ser magro
Tem que ter saldo no banco
Algo mais está machucando você — e é por isso que você precisa de maconha ou uísque, ou chicotes e roupas de borracha, ou ouvir música tão alto que não consegue nem pensar.” — Charles Bukowski, em Tales of Ordinary Madness
Ele seguia caminhando pelas calçadas do bairro, pensativo, logo depois de se despedir de mim, com um beijo no rosto e um abraço.
“— Você não quer ir comigo?”, perguntei
“— Não, obrigado”, respondi. “Vou pegar um táxi na rua.”
Assim, seguimos em direções opostas, cada um em seu caminho. Passei mais alguns cadastrados, mas sequer acenei. Ao invés disso, segui caminhando, com as mãos metidas nos bolsos, a mochila nas costas. Acabara de ouvir um relato que mudaria a minha vida.
Meus pensamentos iam longe e não pairavam somente sobre o nosso encontro, que acabara de se suceder — não porque não tenha sido importante, que fique claro, mas pela simples natureza associativa da mente. Por alguma razão, rodava em minha cabeça uma incessante retrospectiva do mês de Julho, que encerrara havia poucos dias.
Tem que ser sábio
Tem que ser hétero
Tem que ter cabelo
Tem que ter carro do ano
Tem que ser hétero
Tem que ter cabelo
Tem que ter carro do ano
Ali, caminhando solitária na calçada escura, me lembrei de Olavo, com quem estive por duas vezes visitando esse mês.
Terminamos por nos encontrar, Olavo e eu, na esquina da Cândido Benício. Com seus longos cabelos pretos presos atrás das orelhas, Olavo coçava as narinas ao sair e entrar, por algumas vezes, do toalete.
E o mesmo ritual se repetiu no encontro seguinte. Já achava meio estranho o fato de coçar demais o nariz e sempre andar com olhos avermelhados.
O nosso segundo encontro não seguiu como esperávamos. A segunda visita, a casa vazia, não havia ninguém. Olavo logo se despediu e eu fui segui para a clínica. Assim fomos criando vínculos, laços. Me afeiçoei a Olavo, afinal de contas, moravam ele e dona Judite, sua mãe.
Aos poucos, ele foi me contando mais sobre ele, e a cada visita, fui conhecendo melhor esse ser intrigante. Ele me revelou ser homossexual e ter um relacionamento de alguns anos com um rapaz que foi para o Haiti com o exercito.
Tem que ser bilingüe
Tem que ser beautiful
Tem que ser formado
Tem que ter cartão de crédito
Tem que ser beautiful
Tem que ser formado
Tem que ter cartão de crédito
Olavo sempre foi muito carinhoso e sempre demonstrou ser talentoso. Possuía um incrível talento para as artes e para a pintura. Ao passar dos tempos, fui reparando que Olavo começou a mudar e a silenciar mais. Nem com as minhas visitas ele se abria comigo para conversar.
Até que dona Judite conversou comigo e me explicou o que se passava. Olavo tentava se afastar de mim pois achava que eu estava ao seu lado puramente por pena, por ser portador do vírus HIV.
De inicio foi um choque para mim, Para dizer a verdade, até agora não sei como me senti. Acho que nesse momento cada sensação do meu corpo ficou gelada, principalmente os sentimentos, porque não existia dor, nem bronca, nem lágrimas, nada. Estava intumescida. Suponho que ainda pensava que não era verdade mas depois me coloquei no lugar dele e entendi que ele usou isso como defesa.
Aprendi a jogar exatamente igual a ele: comecei a escrever poesias e mandar pela mãe dele. E a cada semana eu mandava novas mensagens. Assumo, nunca fui muito boa, sempre pegava da internet e mandava pra ele. Assim fui conquistando meu lugar de volta.
Quer saber? Sou como sou
Não quero me encaixar em nenhum padrão
Pode crer, sou como sou
Não preciso ser galã de televisão.
(Eu não, eu não)
Não quero me encaixar em nenhum padrão
Pode crer, sou como sou
Não preciso ser galã de televisão.
(Eu não, eu não)
Um belo dia, ao tocar a campainha de sua casa, fui recebida por ele, com os olhos cheios de lágrimas. Ele em abraçou, e chorando, me falou “Tento enfrentar as coisas com coragem, bem firme sobre as minhas duas pernas, mas às vezes sinto que não posso mais e tenho vontade de me suicidar. Minha mãe me disse que não chore, que tem muita gente como eu e que estão enfrentando a situação com valor. Não acreditei nela. Depois minha mãe me entusiasmou para que viesse a esta porta, e quando abro, dou de cara com você. Vi muitas pessoas na mina situação que riem, sorriem, vivem bem e trabalham juntas. Eu pensava que era a única pessoa que sofria pelo HIV. Agora me sinto mais inspirado. Quero ter certeza de que o que aconteceu comigo não aconteça nunca a nenhuma outra pessoa. Sou grato pela sua tentativa de se aproximar.”
Tem que ser malhado
Tem que ser católico
Tem que ser bem dotado
E nada de cabelo branco
Tem que ser católico
Tem que ser bem dotado
E nada de cabelo branco
Mesmo sendo uma situação complicada a ser enfrentada, entendo que é sempre melhor saber da infecção do que viver na dúvida. E por isso conversei abertamente sobre a doença. Fugir pra que? Nos meses anteriores à descoberta, ele não estava bem de saúde. Rinite, sinusite, gengivite, dermatite, rosácea, constantes febres, tosses intermináveis… Tinha acabado de fazer 20 anos e, inocentemente, imaginei que todos aqueles problemas de saúde fossem por causa da idade. Para ele,era como se estivesse sendo avisado de que a saúde não era mais como antigamente. Sempre foi a alergologistas, dermatologistas, otorrinolaringologistas… Vários deles passaram medicações para controlar aqueles sintomas, mas somente o Médico da Clínica da Família teve a sensatez de conversar abertamente sobre o assunto e solicitar a realização do temido exame.
Até hoje, ele tem muita gratidão ao médico de família pelo profissionalismo e carinho que teve naquele delicado momento. Ele foi bastante cuidadoso nas palavras e mostrou que algo estava muito errado nos exames de sangue. O CD4 estava baixíssimo, ou seja, o corpo estava com “poucos soldados” para se defender de possíveis invasores!
Olho pela janela e não é o que vejo não
Seria muito mal se fosse essa a situação
Chega de preconceito e viva a união
De toda raça, toda cor, sexo e religião
Olavo, conta com lágrimas nos olhos que se lembra daquele momento como se fosse hoje: “Quando abri o exame eu estava sozinho. Acessei o site do laboratório, vi o resultado e senti um misto de sentimentos que não saberia explicar. Naquele momento, a história da minha vida passou como um filme na minha cabeça e eu só imaginava como seria a partir dali. Confesso que não chorei, mas tive medo de morrer. Meses antes, tinha sido abalado pela morte de dois conhecidos (por esse motivo) e descoberto que eu conhecia outros três portadores do vírus: um grande amigo e dois conhecidos. Cheguei a cogitar não contar nada a minha mãe, mas mudei de ideia, pois sabia que eu não conseguiria segurar aquela barra sozinho. Quase não dormi naquela noite e, logo ao acordar, parti para a casa. Esse momento foi o mais triste da minha vida. Minha mãe se derramavam em choro e me abraçava inconformada. Ninguém me culpou de nada. Só decidimos que, a partir daquele momento, aquele seria nosso maior segredo.”
Hoje, um ano após iniciar o tratamento aqui na clínica, podemos dizer que ele é outra pessoa. Saúde de ferro. Todas as taxas sanguíneas equilibradas, vem se alimentando melhor, praticando exercícios físicos com regularidade… O próprio Olavo, deixa uma mensagem a vocês: “Se me pedissem um conselho, eu falaria o seguinte: previna-se, mas faça o teste regularmente. O tratamento é chato, mas só assim, você poderá voltar a ter qualidade de vida, sem problemas de saúde.”
Quer saber? Sou como sou
Não quero me encaixar em nenhum padrão
Pode crer, sou como sou
Não preciso ser galã de televisão.
* Os cadastrados tiveram seus nomes alterados para preservar a sua integridade.
* Musica citada: Sou como sou - Preta Gil
Agente Comunitária de Saúde Renata Nascimento
Email: equipeteles@gmail.com
Nesta História foi usado Nome fictício e as fotos é mera ilustração,para preservar a imagem do Cadastrado.
Obrigado a todos.